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Bocão 64

domingo, 22 de maio de 2022

Cultura consumista e depressão podem ser relacionadas já na infância


A cultura que estimula o consumo exagerado tem afetado crianças e adolescentes de formas diversas. Para entender a relação da cultura consumista e depressão na infância e juventude, o Criança e Consumo buscou a doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo e diretora do Instituto Gerar, Vera Iaconelli*, que atende jovens, adultos e famílias em sua clínica.

 Nesta entrevista, Iaconelli problematiza sobre a importância dos objetos para a formação da identidade e afirma a necessidade de orientar pais e mães neste contexto de cultura consumista e depressão.

 Criança e Consumo – Como essa sociedade consumista afeta a construção da subjetividade, principalmente de crianças?

Vera Iaconelli – Uma sociedade baseada no consumo como a nossa faz crer que o objeto consumido daria conta de satisfazer o desejo humano. A promessa da publicidade é que, ao adquirir esse ou aquele objeto, você alcançaria a satisfação. Como simplesmente não é possível, segue a promessa de que o próximo objeto o fará. E assim, sucessivamente, seguimos consumindo no autoengano de que o consumo aplacará nossa falta. Ter o último celular lançado no mercado torna-se imprescindível mas, passado um ano, esse já se tornou dispensável, até execrável.

Por outro lado, os objetos sempre agregaram valor aos sujeitos. Na lógica capitalista e consumista, os objetos adquiridos não só agregam valor social, como também são confundidos com a própria identidade do sujeito. Ou seja, você usa uma caneta para escrever, mas essa caneta precisa ter estampado um bonequinho da Disney ou marca reconhecida. Este algo a mais, desnecessário do ponto de vista prático, faz apelo a uma outra coisa: garantir que o sujeito, o proprietário, é “o cara”. O objeto está associado com quem é a pessoa. E esse é um outro grande perigo. Neste modelo, o que eu tenho diz quem eu sou. A humanidade sempre fez isso, sempre precisou se afirmar. Mas na sociedade do consumo, o sujeito é confundido com os objetos que tem. Eu não tenho objetos, eu sou alguém que tem objetos, eles dizem de mim.

CeC – Precisamos desvalorizar as coisas? Como seria isso? Explicar que um bonequinho de plástico não é nada além de um bonequinho de plástico?

VI – O ser humano sempre anseia, é um ser desejante e isso nos move. Um carro, a casa própria, casar, uma carreira, etc. Vamos desejando coisas. E vamos nos projetando e correndo atrás dessas coisas. Algumas dessas projeções vão ficando obsoletas, algumas conseguimos alcançar, outras não. O perigoso não é o desejo da criança pelo bonequinho de plástico. A gente que é mais velho consegue lembrar de objetos que almejávamos na infância. A gente sabe o significado desse desejo. O problema é que estamos em um período mais complicado. A criança mal deseja um objeto e já ganha. Às vezes os pais até antecipam esse desejo. Assim, ela não consegue formular o desejo, esperar seis meses, ganhar e brincar até estragar, para então, almejar outro objeto e fazer o luto do que estragou. Ou seja, fazer todo o processo de desejar, efetivamente conquistar e até perder.

CeC – Então é importante não atender a todos os desejos das crianças?

VI – Sim, claro. A função dos pais é ajudar a criança a lidar com seu corpo, seus impulsos, e a vida social. Quando a criança formula o desejo por X ou Y, ela vai descobrindo quem ela é também. Por exemplo, ela uma criança que prefere uma bola a uma boneca, ou roupas a um brinquedo. Isso fala um pouco dela. Mas se a criança é criada de forma que nunca tem tempo para esperar que algum desejo se formule, o risco é que ela demande furiosamente objetos para descartá-los até parar de demandar, pois nenhuma satisfaz. Maria Rita Kehl trabalha a questão do tempo e da depressão em seu livro o “Tempo e o Cão” lindamente. Porque, se os pais não sustentam o tempo da falta para a criança, o desejo não se formula e a ausência de desejo é a depressão. Quer dizer, há um atropelamento do desejo. Os objetos estão chegando muito rápido e as crianças estão descartando, quebrando, eliminando porque precisam ‘ficar sem’ para poder desejar. Por outro lado, elas ficam extremamente ansiosas de ficar sem e acontecer algo terrível, com medo do luto, do vazio.

CeC – Como enfrentar essa situação? Devemos discutir cultura consumista e depressão?

VI – Os pais estão muito perdidos e supondo coisas sobre a responsabilidade parental muito equivocadas. Muitas vezes eles pensam que a criança não pode se frustrar. Então, eles tentam fazer o melhor para a criança, mas eles não se dão conta de que é preciso deixar a criança sem, fazer a criança esperar. Muitas vezes eles acham que é imperativo do papel de pai preencher sem parar. Bom, tem o básico para o bem-estar, claro. O recém-nascido, por exemplo, precisa de um cuidado ostensivo. Mas mesmo o recém-nascido pode esperar um tanto para mamar. Esse é o paradigma que a Maria Rita Kehl usa para falar de alguns quadros depressivos crônicos: pais onipresentes, ansiosos demais, que não aguentam ver a criança chorar sob nenhuma circunstância. Os pais precisam ser sensibilizados sobre o papel deles. Precisamos fazer os pais entenderem que ajudamos a criança a lidar com a falta, sem a pretensão de eliminá-la, pois ela é constituinte.

CeC – E como lidar com este estímulo ao consumismo da perspectiva da responsabilidade dos agentes privados?


VI – Temos grandes interesses econômicos em jogo. Tem coisas que não se resolvem no nível dos pais, temos que fazer campanhas e mobilizar para que exista uma pressão social ou uma vontade política de enfrentar certos lobbies privados muito sérios. Com a sensibilização dos pais e da sociedade, a tendência é que as empresas, não em nome do bom mocismo, mas de interesses econômicos, se adaptem. A questão ecológica mudou várias empresas que continuam ávidas por lucro. A sustentabilidade acabou sendo o diferencial para alguns consumidores, e as empresas se ajustaram às expectativas. Podemos mostrar para os cidadãos que eles podem rejeitar certas formas de vender e, para as empresas, mostrar que a mudança de postura pode ter apelo para fidelizar o consumidor.

CeC – Como a publicidade infantil afeta as crianças?

VI – A criança absorve o mundo como uma esponja. Ela tem uma competência e uma inteligência para absorver o mundo. Ela percebe logo o valor dos objetos nas relações sociais, mas o faz sem capacidade crítica. A criança é capturada muito facilmente. Quando ela vê uma publicidade de um brinquedo que voa, é incapaz de entender que não é bem assim. Mas se ela viu na televisão, é como se isso bastasse. A publicidade abusa da credulidade infantil e seduz sem escrúpulos. São os pais que devem fazer a escolha do que oferecer aos filhos em qualquer âmbito: comida, roupa, brinquedos. Dentro dessa seleção prévia, desse filtro parental, a criança terá uma margem de escolha. Esse filtro, que os pais fazem e que só começou a existir a partir do século XVIII, chama-se infância.




 



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