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Bocão 64

terça-feira, 17 de maio de 2022

Autores alertam para a tirania da felicidade, do prazer e do pensamento positivo


No filme Margin Call - O Dia Antes do Fim (EUA, 2011), um banco americano de investimentos demite 80% de seus empregados durante o colapso financeiro de 2008. O personagem de Kevin Spacey é o chefe do setor de risco da empresa e, logo após os desligamentos, batendo palmas, ele dirige algumas palavras aos funcionários restantes:

"Vocês ainda estão aqui por uma razão. Oitenta por cento do nosso pessoal acaba de ser mandado para casa. Passamos a última hora dizendo 'tchau'. Eram boas pessoas, e eram boas no que faziam, mas vocês são melhores. Agora que elas foram embora, não vamos mais pensar nelas. Esta é a oportunidade de vocês. (...) Três em cada sete pessoas que estavam entre vocês e o cargo dos seus chefes já não trabalham mais aqui. Esta é sua chance."

Em outro filme, Amor sem escalas (EUA, 2009), o infortúnio da demissão é rapidamente convertido na oportunidade de buscar os próprios sonhos, conforme orientação dada pelo personagem de George Clooney, que viaja pelo mundo para dispensar pessoas.

Técnicas como as dos personagens "se tornaram úteis no mundo corporativo contemporâneo ao transferir o ônus da responsabilidade sobre a empresa para os assalariados e administrar estes em termos de sua felicidade pessoal", escrevem o psicólogo espanhol Edgar Cabanas e a socióloga marroquina Eva Illouz no livro Happycracia: fabricando cidadãos felizes, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Ubu.

Na publicação, os autores percorrem os rastros de perdas e mal-estar deixados pelo discurso que estabelece a felicidade individual como meta suprema de vida e destacam os efeitos colaterais em relação aos âmbitos pessoal, profissional e social.
No mercado de trabalho, a felicidade — até então um objetivo esperado a partir da atividade laboral — se tornou um requisito para a contratação, manutenção e promoção do cargo.

Assalariados felizes representam a garantia de que "trabalharão ao máximo, continuarão motivados, sentirão prazer pelo que fazem e aumentarão a produtividade", exemplificam no livro.

Especialmente diante de adversidades, com a promoção de atitudes como a resiliência e a autogestão, caberia aos funcionários os custos psicológicos das fragilidades e instabilidades de uma empresa.

Isso quer dizer que não importam as condições de trabalho, se são precárias ou exaustivas: a receita transmitida ao trabalhador é a de que com mais empenho, resiliência e positividade ele pode mudar sua realidade e se esbaldar no copo meio cheio. O copo vazio, indesejado, transparece problemas como o burnout, esgotamento físico e mental advindo da atividade profissional, e adoecimentos psíquicos, como a depressão.

Segundo Illouz e Cabanas, a influência da felicidade no ambiente corporativo não se deu por acaso e é encontrada também nas gestões governamentais, com destaque para as adeptas do neoliberalismo.

É derivada do significativo impacto provocado pela psicologia positiva, apresentada no ano 2000 em um manifesto do psicólogo e então presidente da Associação Americana de Psicologia Martin Seligman com o propósito de difundir uma ciência focada nas emoções positivas e na autodeterminação como caminho para a felicidade.

A proposta, de acordo com os pesquisadores, foi acolhida não só por acadêmicos, pela imprensa, formadores de opinião e o grande público, como também por economistas e políticos que viram na felicidade a chave para mensurar o sucesso de uma sociedade.

Metodologias foram criadas para quantificar critérios subjetivos como bem-estar, equilíbrio e prazer, e índices de felicidade passaram a nortear políticas públicas em vários países, em detrimento de ações voltadas à distribuição de renda e à promoção de direitos.

"Não há nada de errado em buscar a felicidade. É de fato um direito fundamental. Os indivíduos têm o direito de definir por si mesmos o que os faz se sentir bem", argumenta Eva Illouz em entrevista à BBC News Brasil.

"Estudamos a psicologia positiva, que é uma distorção muito específica da ideia de felicidade, se tornou uma subdisciplina da economia e serve ao propósito de muitos países, democráticos e ditatoriais. Muitos governos estão tentando substituir uma redistribuição justa de recursos pela felicidade. Isso é algo que deve nos preocupar", complementa Illouz, que é diretora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França.

"Se você mensura a felicidade e declara que este é o objetivo da política, acaba considerando melhor ter países profundamente desiguais do que sociedades mais igualitárias, simplesmente porque as pessoas na Índia declararam que são mais felizes do que as pessoas na França."

Na prática, explica a socióloga, a busca pela satisfação dos cidadãos substitui os princípios de liberdade e justiça.

"Se eu criasse uma sociedade de jogos e assim fizesse as pessoas felizes, esta seria uma sociedade melhor?", questiona.

Em entrevista à BBC News Brasil, Illouz e Cabanas alertam que um dos problemas de apresentar a felicidade como o objetivo mais fundamental a ser perseguido na vida é negligenciar valores tão importantes quanto, como igualdade, solidariedade ou justiça.

"Ignora-se completamente o fato de que estes outros valores são necessários para ser feliz. Poucos fatores são tão determinantes para a felicidade quanto a desigualdade, por exemplo."

"De fato, talvez nenhum outro fator sociológico esteja mais forte e claramente relacionado ao bem-estar e à saúde mental do que a desigualdade. Os dados sobre isso são sólidos e convincentes: as taxas de doença mental são inconfundivelmente mais altas em sociedades com maiores diferenças de renda", explicam os pesquisadores.

Cada um por si

Não é de hoje que a felicidade é um desejo tão valioso. Mas seus parâmetros mudaram e passaram a orbitar em torno do "eu", de forma que ser feliz passou a ser uma busca pessoal, associada à aquisição e ao desenvolvimento de três características psicológicas: a autogestão emocional, a autenticidade e o florescimento.

Para hospedar a felicidade dentro de si, há uma indústria à disposição, na qual são ofertados cursos, serviços terapêuticos e de coaches, treinamentos da força interior, literatura de autoajuda, palestras motivacionais, técnicas de meditação, aplicativos medidores de bem-estar e aconselhamentos.

Edgar Cabanas, que é professor e pesquisador na Universidade Camilo José Cela, em Madri, explica à BBC News Brasil que a noção de felicidade analisada no livro estabelece que a vida boa não seria uma questão social, cultural e política, mas uma questão de escolha individual, responsabilidade pessoal e fatores subjetivos como atitude e força de vontade.


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