No último dia 1º, técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) saíram às ruas para dar início às entrevistas do 13º Censo populacional. No mesmo dia há 150 anos, sob os auspícios de D. Pedro II, começava outro Censo, o primeiro da história do Brasil.
Em 1º de agosto de 1872, as paróquias de todos os cantos do Império mandaram às casas das redondezas formulários de papel que deveriam ser preenchidos pelos chefes de família e depois devolvidos, para a tabulação das informações.
O Censo de 1872 encontrou no país quase 10 milhões de “almas” (mais precisamente, 9.930.478). Hoje, como comparação, só a cidade de São Paulo tem 12,4 milhões de habitantes e o Brasil todo conta 215 milhões.
Pela contagem feita no Segundo Reinado, havia no território nacional 1,5 milhão de escravizados (15% dos habitantes), entre africanos e brasileiros. Esse foi o único recenseamento realizado na vigência da escravidão.
Do total da população, 58% foram declarados pretos ou pardos, 38% apareceram como brancos e 4% foram descritos como indígenas. O Brasil era quase todo católico (99,7%) e majoritariamente analfabeto (82% da população a partir dos 6 anos de idade).
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que havia anos que os políticos do Império cobravam a contagem integral da população brasileira.
— Quem é que há de dizer que o Brasil, com 30 e tantos anos de independência e sendo já um reino antes de proclamá-la, ainda não tem conhecimento do número de indivíduos de que se compõe? Ah, senhores, olhemos para a marcha das nossas coisas e vejamos se isso não é uma vergonha — indignou-se em 1855 o senador Holanda Cavalcanti (PE).
— Como observa o grande e distinto poeta alemão Goethe, não só os algarismos governam o mundo, mas também mostram como ele é governado. Não sei como se possa dirigir bem a administração de um país sem conhecer sua população e seus recursos — discursou em 1865 o senador Pompeu (CE).
O que havia no Brasil em termos estatísticos eram números apurados pelas províncias — por vezes seguindo critérios desencontrados e até sem muito rigor — ou então meras estimativas nacionais.
Em 1867, por exemplo, o governo brasileiro distribuiu na Exposição Universal de Paris um documento que dizia que a população do Império beirava os 12 milhões (número 20% superior ao que seria apurado pelo Censo de 1872).
— Não temos estatísticas dignas de confiança — queixou-se em 1855 o senador Marquês de Paraná (MG), presidente do Conselho de Ministros (cargo equivalente ao de primeiro-ministro). — As que temos são defeituosas. São feitas, principalmente, por pessoas interessadas muitas vezes em aumentar o número dos habitantes para assim aumentar o número dos eleitores e o número de batalhões de guardas nacionais que devem ser criados em cada localidade. São estatísticas que não merecem inteira confiança.
Em 1870, Pompeu mostrou ao Senado na prática a dificuldade das estimativas. O senador cearense havia calculado em 426 mil a população da cidade do Rio de Janeiro, a capital do Império, e incluído o número num compêndio de geografia que ele próprio escrevera.
— Ora, querendo eu calcular a população da corte do Rio de Janeiro e não tendo o meio direto, que é o Censo, recorri a um meio indireto que a ciência ensina. Tomei por base a população calculada em 1849 pelo Sr. Haddock Lobo. Ele dava então 266.466 habitantes e disse em seu relatório que procedeu a esse exame com o maior escrúpulo. Portanto, aplicando a lei que fez duplicar em Baden [país que faria parte da Alemanha] a população em 34 anos, tomei os habitantes verificados em 1849, dei um acréscimo de 60% correspondente aos 20 anos decorridos daquele arrolamento para cá e concluí que a população desta cidade corresponde a 426 mil habitantes.
— E por que não admitiu a base de 1838, que dava 130 mil habitantes? — provocou o senador Figueira de Melo (CE), adversário de Pompeu.
— Porque não quis — devolveu o senador geógrafo.
O Censo de 1872 apontaria que o Rio de Janeiro tinha, na realidade, 275 mil habitantes (35% a menos do que o estimado pelo senador Pompeu).
Quando pediam o Censo, os senadores não tinham em mente subsidiar o planejamento de políticas públicas, como a construção de escolas, hospitais ou casas populares. No Brasil do século 19, ainda não existia o conceito de políticas públicas como hoje se conhece.
Os números poderiam servir para o cálculo de eleitores, o recrutamento de homens para as forças de segurança, a criação de impostos, a delimitação de novas províncias e o redimensionamento da bancada de cada província na Câmara dos Deputados.
— Toda alteração que se fizer [nas bancadas] será injusta, quer ela seja para mais, quer seja para menos. Só poderemos fazer uma alteração justa à vista de uma base de população, mas base verdadeira, e não fundada em cálculos gratuitos — avaliou em 1840 o senador Holanda Cavalcanti. — Um diz que tal província tem tanta população, outro diz que outra província tem também tal população. É certo que essas asserções são de pessoas respeitáveis e podem ter muita probabilidade, mas tudo isso não são dados exatos sobre os quais se possa legislar.
— Até hoje tem-se calculado [a respeito das bancadas na Câmara] mais ou menos por alto. Não se tem tido a base, que é o Censo da população — constatou em 1855 o senador Visconde de Maranguape (RJ). — Se ao menos fosse em um país onde, como em outros, a representação é gratuita, ainda se podia dizer que era só o desejo de aumentar a representação nacional. Mas, quando a representação é assalariada, o que parece isso?
O momento em que o Brasil provavelmente mais sentiu falta de números confiáveis foi durante a Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870. O país ainda não tinha um Exército consolidado, e a lacuna estatística atrapalhou o cálculo do contingente de homens que D. Pedro II recrutou em cada província.
Outra preocupação dos senadores era a imagem do Brasil no exterior. Em meados do século 19, época em que a ciência florescia a olhos vistos e era tida como capaz de resolver os grandes problemas da sociedade, entendia-se que os governos que negligenciavam a estatística faziam parte do vergonhoso grupo das nações atrasadas.
— Ultimamente, uma gazeta alemã, falando da Turquia, dizia que essa nação era a mais ignorante que havia na Europa porque até não sabia o número de habitantes que tinha o seu império. Por que razão, pois, não havemos de ressalvar-nos dessa pecha de ignorantes? — discursou o senador Cruz Jobim (ES) em 1855. — Em Portugal, faz-se alguma coisa. Os capitães-mores dão informações, e entre nós também esses capitães-mores alguma coisa faziam. Mas, acabados eles, não temos tido mais notícias de nascimentos, óbitos nem coisa alguma que respeite à população. Há, quanto a tudo isso, a mais completa ignorância.
— Em todos os países da Europa está estabelecido o recenseamento em épocas mais ou menos distantes umas das outras — afirmou em 1854 o senador Fernandes Chaves (RS). — Na Inglaterra, na Sardenha e na Holanda, o recenseamento é feito de dez em dez anos. Nos Estados Unidos, também é assim. Na França, de cinco em cinco anos. Na Áustria, na Prússia e na Saxônia, de três em três anos. Só faz exceção a essa regra a Espanha, que conta a sua população por cálculo.
O Brasil, contudo, não estava inerte. Duas décadas antes do Censo de 1872, o imperador D. Pedro II chegou a baixar um decreto determinando a realização daquele que poderia ter sido o primeiro recenseamento nacional. O decreto acabou sendo revogado.
A revogação ocorreu porque parte dos moradores do interior de Pernambuco e províncias vizinhas se rebelou em 1852 contra a contagem da população. Os mais pobres, muitos deles negros libertos, temiam, entre outras coisas, que o recenseamento servisse de instrumento para o Império convocá-los para trabalhos forçados ou até mesmo reescravizá-los.
— Foi possível persuadir aos crédulos que se tinha por fim escravizá-los, visto que se empregava esta linguagem: “Por que vos pedem detalhes minuciosos sobre vossa vida íntima? Por que querem saber que idade tendes, quantos filhos tendes? É porque se quer contar com a população para um trabalho obrigado” — avaliou em 1868, no Senado, o ministro da Justiça, Martim Francisco. — Era mais fácil [do que hoje] fazer a gente pouco ilustrada crer que o decreto relativo ao Censo, que aliás continha muito boas disposições, tinha um fim que não era aquele que tivera em mira o poder competente.
O temor dos ex-escravizados em 1852 se justificava pelo fato de que a Lei Eusébio de Queiroz, aprovada apenas dois anos antes, havia proibido em definitivo o tráfico transatlântico de escravizados, o que inevitavelmente levaria à escassez de mão de obra cativa no Império.
O movimento insurgente popular que conseguiu abortar o recenseamento ficou conhecido como Guerra dos Marimbondos ou Ronco da Abelha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário