Com o incentivo dos pais, Júlia Souza Reis sempre sonhou em estudar em uma universidade pública. Aluna desde o ensino fundamental l da rede estadual de São Paulo, a jovem de Santo André, na região metropolitana da capital paulista, estampava nos boletins notas excelentes. “Entrar em uma universidade pública, para mim, era uma oportunidade de melhorar as condições de vida da minha família”, conta ela, hoje com 25 anos. O problema é que, em uma sociedade meritocrática, a justiça nem sempre está do lado de quem mais precisa. Júlia foi percebendo isso no segundo ano do ensino médio, quando prestou o Enem como treineira e se decepcionou com a pontuação obtida, muito distante das notas de corte dos cursos para os quais prestaria no ano seguinte.
A explicação para esse resultado estava na defasagem da educação que havia recebido até então. O que o histórico escolar repleto de boas notas não mostrava é que, para ela e tantos outros alunos da rede pública, muitas vezes faltam materiais e professores nas escolas. Com docentes sobrecarregados e dando aulas a turmas lotadas, a discrepância entre o ensino privado e público é enorme. Tamanha desigualdade foi discutida por décadas até uma medida concreta ser adotada a nível nacional.
Em 29 de agosto de 2012, foi aprovada uma norma federal para promover mais equidade no ingresso ao ensino superior público. Conhecida como Lei de Cotas, a lei nº 12.711 previa que 50% das vagas em instituições federais de ensino técnico e superior vinculadas ao Ministério da Educação fossem reservadas a estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas integralmente. Além disso, metade delas seria destinada a alunos cuja renda familiar fosse igual ou inferior a um salário mínimo e meio.
Quatro anos depois, em 28 de dezembro de 2016, foi aprovada a lei nº 13.409, que incluiu na Lei de Cotas mais grupos minoritários. A norma passou a dispor que aquelas vagas destinadas a alunos vindos do ensino médio público também seriam repartidas entre candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, além de pessoas com deficiência. A ideia é que a composição das turmas espelhe a população do estado ao qual a instituição de ensino pertence.
Após estudar quase dois anos em um cursinho popular gratuito, Júlia conseguiu realizar seu sonho e de sua família. Em 2017, ingressou no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo (SP), graças à reserva de vagas destinadas a estudantes que concluíram o ensino médio na rede pública. Parda (mas que na época não se declarou como tal por entender que seu tom de pele era muito claro) e filha de trabalhadores que não tiveram oportunidade de fazer uma faculdade, Júlia faz parte de uma nova leva de estudantes que têm mudado o perfil do universitário brasileiro.
Trajetória de privilégios
Para entender por que a educação superior do Brasil é historicamente branca e rica, vale a pena voltar alguns séculos e analisar a formação desse sistema de ensino no país, que é muito jovem comparado ao de outras nações. Grandes centros de formação superior já existiam na Ásia, África e Europa desde a antiguidade, mas a concepção moderna de uma universidade nasceu em 1088, com a criação da Universidade de Bolonha, na Itália. Desde então, a Europa inaugurou algumas das mais renomadas universidades do mundo, como as de Oxford (1096), Salamanca (1134) e Cambridge (1209).
Quando os europeus vieram para as Américas, construir universidades não era bem uma prioridade, mas mesmo assim algumas foram inauguradas a partir do século 16. A primeira foi a Universidade São Tomás de Aquino, em 1538, na atual República Dominicana. Hoje, a entidade é conhecida como Universidade Autônoma de Santo Domingo. Em menos de 20 anos, os espanhóis também fundaram a primeira universidade da América do Sul: a Universidade de San Marcos, no Peru, em 1551. Já no século 17, os ingleses passaram a construir suas academias na América do Norte, sendo a primeira delas a Universidade Harvard, de 1636.
Os portugueses só foram se preocupar em investir na formação superior de sua colônia por aqui no século 19. Em 18 de fevereiro de 1808, menos de um mês após a chegada de D. João VI ao Brasil, foi fundada a Escola de Cirurgia da Bahia, a primeira instituição de ensino superior do país. Depois dela, várias outras surgiram, mas nenhuma concentrava cursos de diferentes áreas para serem consideradas universidades. A palavra “universidade” tem origem no termo em latim universitas, que significa “universalidade”. Para que uma instituição acadêmica receba esse nome, portanto, precisa abranger um universo de diferentes cursos, sobre temas variados.
Foi só no século 20, mais precisamente em 1909, que o Brasil inaugurou sua primeira universidade — embora ela não tenha recebido esse título na época. A Escola Livre de Manaus oferecia formação militar e cursos de agronomia, ciências jurídicas, farmacêuticas, sociais e naturais, engenharia civil, entre outros. Na década de 1920, porém, a instituição teve alguns cursos fechados por falta de verba. Levou 42 anos até que voltasse a funcionar plenamente, já sob o nome de Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Entre os centros de ensino superior pioneiros no país também estão a Universidade Federal do Paraná (UFPR), de 1912, a primeira a ser concebida como uma universidade de fato; e a Universidade de São Paulo (USP), que em 1934 tornou-se a primeira universidade brasileira baseada nos pilares de ensino, pesquisa e extensão.
Ao longo desses dois séculos de existência, o ensino superior do Brasil foi formado por um corpo discente majoritariamente branco e rico, que deixou de ter que cruzar o Atlântico em busca de formação na Europa e passou a ocupar as salas de aula de universidades públicas por aqui mesmo.
Conhecida como Lei do Boi, a lei nº 5.465 foi aprovada em 3 de julho de 1968. A princípio, ela estabelecia que 50% das vagas de cursos de agronomia e veterinária mantidos pela União fossem destinados a “candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural” e 30% para aqueles com o mesmo perfil, mas que morassem em cidades ou vilas sem acesso ao ensino médio. Acontece que, após anos de aplicação, constatou-se que os principais beneficiados eram filhos de grandes fazendeiros, que tinham condições de frequentar o ensino superior sem cotas. A Lei do Boi esteve em vigor até 1985.
Foi só com o fim da ditadura militar e o início da redemocratização que a luta pelo acesso ao ensino superior a quem precisa se fortaleceu. “Em 20 de novembro de 1995, tivemos a Primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida em razão dos 300 anos do assassinato de Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes da resistência negra brasileira”, lembra Joaze Bernardino-Costa, professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Reunindo cerca de 30 mil pessoas na capital do país, a manifestação chamava atenção para a falta de políticas públicas voltadas à população negra.
O acesso ao ensino superior era uma das principais demandas. “A partir desse evento, o governo FHC [de Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil de 1995 a 2002] criou um grupo de trabalho interministerial que começou a estudar propostas de ações afirmativas e organizou um seminário sobre multiculturalismo e antirracismo para elaborar medidas de enfrentamento ao racismo no Brasil.” O assunto havia entrado na pauta do governo federal graças ao movimento negro, mas foram necessários muitos mais anos de luta para que estudantes pretos conseguissem ter maior acesso ao ensino superior público do país.
Um passo à frente
Antes mesmo da aprovação das leis federais, alguns estados e universidades já haviam se adiantado na discussão sobre cotas e criado suas próprias regras. A primeira instituição pública de ensino superior a implementar cotas sociais e raciais no ingresso de seus estudantes foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com a aprovação da lei estadual nº 3.524 em 2000, foram reservadas 50% das vagas para pessoas que cursaram integralmente o ensino médio em escolas da rede pública municipal e estadual.
Já em 2001, a lei estadual nº 3.708 marcou a criação de cotas destinadas à população negra para as vagas de graduação da UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Nos anos seguintes, as cotas foram sendo remanejadas e ampliadas, incluindo a criação de reservas para candidatos indígenas e pessoas com deficiência.
“Qualquer pessoa que esteve na universidade [UERJ] antes das cotas vê uma mudança racial e econômica drástica no corpo discente”
Luiz Augusto Campos, professor do IESP-UERJ
Se em 2003 a UERJ recebeu 3.056 cotistas em seu primeiro vestibular com reservas de vagas, em 2020 esse número chegou a 7.553 alunos. “Qualquer pessoa que esteve na universidade antes das cotas vê uma mudança racial e econômica drástica no corpo discente”, afirma o cientista político Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da UERJ e coordenador do Grupo de Estudos Disciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) da universidade.
Outra instituição que esteve à frente das discussões sobre cotas foi a UnB, a primeira universidade federal a criar vagas para enfrentar a exclusão étnico-racial existente no ensino superior e também a primeira a fazê-lo por conta própria, sem uma demanda exigida por lei. Quem estabeleceu o primeiro plano de cotas da UnB foi o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), que aprovou em 2003 a reserva de 20% das vagas da graduação para estudantes negros e criou 20 vagas adicionais para indígenas, que são acessadas pelo Vestibular Indígena. Realizado em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), esse processo seletivo é adaptado ao tipo de educação ministrada em tribos Brasil afora.
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